Encontro Nacional de Agricultores e agricultoras Experimentadores Publica carta politíca





Carta do IV Encontro Nacional de Agricultoras e Agricultores Experimentadores Inventividade, resistência, luta e esperança. Quatro palavras-chave que iluminam o nosso caminho como agricultoras e agricultores do Semiárido brasileiro. Em um momento muito conturbado da vida nacional, viemos a Aracaju-SE, entre os dias 06 e 09 de junho de 2016, para celebrar e reafirmar esse caminho, que é o caminho da convivência com o Semiárido. Somos 290 agricultoras e agricultores vindos de dez estados da região Semiárida, reunidos no IV Encontro Nacional de Agricultoras e Agricultores Experimentadores, evento promovido pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA). Com o lema Guardiões da Biodiversidade, Cultivando Vidas e Resistência no Semiárido, nos juntamos a 80 técnicos e técnicas de organizações vinculadas à ASA para refletir sobre os avanços sociais e políticos ocorridos nos últimos 13 anos em nossa região e sobre os iminentes riscos de interrupção dessa trajetória virtuosa por conta do golpe perpetrado pelo Congresso Nacional contra o mandato da presidente Dilma Roussef, legitimamente constituído nas urnas. Foi da inventividade de um agricultor-experimentador do estado de Sergipe que nasceu a tecnologia social que atualmente pontua de branco as residências de mais de um milhão e duzentas mil famílias rurais no Semiárido. Essa conquista que revoluciona a vida de mais de seis milhões de pessoas não veio de graça. Ela é o resultado de muita luta. Luta contra preconceitos. Luta contra o coronelismo que, historicamente, renovou o seu poder ao manter o povo do Semiárido subjugado aos seus grandes interesses e pequenos favores. Luta contra a concentração da terra e da água por uma elite predatória e excludente. Luta contra a burocracia estatal e sua eterna desconfiança na capacidade de nossas organizações de executar um programa público da dimensão do Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) com eficiência administrativa e fiscal e transparência pública. No início de nossa caminhada, ao anunciarmos a meta de construção de 1 milhão de cisternas rurais, fomos tachados de loucos. Sabíamos que além de nossa inventividade e capacidade de luta, contávamos com nossa esperança. Ela nos movia para frente. Depois de muitos anos trabalhando em parceria com governos que apostaram em nossa caminhada, nossa meta foi ultrapassada. Além disso, no meio dessa trajetória, iniciamos um segundo programa, dessa vez com o objetivo de implementar infraestruturas para captar e armazenar a água das chuvas para a produção de alimentos. Através do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2), mais de 200 mil famílias já possuem seus equipamentos. Alimentos de alta qualidade são produzidos em abundância e diversidade, enriquecendo a dieta de nossas famílias e contribuindo para eliminar o flagelo da fome e da subnutrição em nossa região. A produção de qualidade orgânica abastece feiras, mercados locais e mercados institucionais nas pequenas cidades da região. Dessa forma, o Semiárido brasileiro demonstra a possibilidade de universalizar o consumo de alimentos sadios, livres de agrotóxicos e transgênicos para toda a população. Comida de verdade é um direito de todos e todas e não um privilégio de uma elite. Repetindo a experiência bem sucedida do P1MC na mobilização da solidariedade comunitária, na construção das infraestruturas, reduzindo os custos públicos e aumentando a qualidade das implementações, o P1+2 trouxe uma novidade que foi o reconhecimento e o estímulo à experimentação camponesa. Mais de duas mil experiências individuais e coletivas de produção, processamento e comercialização e de auto-organização comunitária foram sistematizadas para permitir que nossos ensinamentos circulassem entre as agricultoras e agricultores experimentadores. Dezenas de milhares de nossas agricultoras e agricultores participaram de encontros locais, estaduais e regionais e de intercâmbios, nos quais temos a oportunidade de visitação para nos ensinar uns aos outros a arte da convivência com o Semiárido. Mais recentemente, uma nova iniciativa da ASA em parceria com o governo federal vem enriquecer essa trajetória. Trata-se do Programa Sementes do Semiárido, destinado a resgatar, conservar, multiplicar e disseminar sementes de variedades locais adaptadas. Esse programa está estruturado para constituir uma ampla e capilarizada rede de seguridade no abastecimento de sementes de qualidade para a agricultura familiar da região. Em sua primeira fase, foram implementados 640 casas e bancos de sementes comunitários, associando mais de 12 mil famílias agricultoras. Nesse universo, foi realizado um mapeamento da diversidade de 52 espécies cultivadas em quintais e roçados, identificando um enorme patrimônio genético que vem sendo conservado por gerações pela ação dos guardiões e guardiãs da agrobiodiversidade. Além de contribuir para garantir a segurança alimentar e econômica das famílias, essa nova iniciativa é uma expressão de resistência contra os processos de erosão genética que vêm se acentuando na região com a disseminação de transgênicos e com as mudanças climáticas. Esses programas vêm provando o seu valor para a vida de nossas famílias. Juntamente com outras políticas públicas do governo federal, eles têm provocado uma revolução silenciosa no Semiárido. Por meio deles, nossas lutas de resistência converteram-se em lutas por emancipação. Novos horizontes são abertos para trilharmos caminhos pavimentados por direitos sociais arduamente conquistados, dos quais não abrimos mão. Pouco a pouco o sistema de poder opressor que sempre utilizou as secas como justificativa para manutenção da pobreza no Semiárido vai sendo desmantelado. No lugar da ideia de combate à seca, que alimentou a chamada Indústria da Seca por gerações, afirmamos e consagramos publicamente o princípio da convivência com o Semiárido. Isso significa trabalhar de forma inteligente e integrada às dinâmicas da natureza por meio da agroecologia. Esse é o caminho para a promoção de vidas plenas e sadias para todos e todas. O princípio da convivência foi demonstrado durante o mais severo período de seca dos últimos 50 anos em nossa região. Com nossa força coletiva, criatividade e solidariedade fomos capazes de construir as condições para atravessar esse duro período em que nossa esperança foi mais uma vez colocada em prova. Como resultado, não voltamos a vivenciar os dramas de um passado que, esperamos, ficou definitivamente para trás em nossa história. A plenária das mulheres que realizamos em nosso encontro foi rica em depoimentos sobre trajetórias de emancipação. “Passei a ser reconhecida”. Essa foi uma das frases mais repetidas por todas de nós que vinham a público para relatar as mudanças ocorridas nos últimos 20 anos em suas vidas e na vida de suas famílias e comunidades. Um reconhecimento conquistado na luta contra a invisibilidade, contra o patriarcalismo e contra todas as formas de violência contra as mulheres. Um reconhecimento do papel de nós, agricultoras, como guardiãs da biodiversidade e como trabalhadoras que geram riquezas materiais e outros valores indispensáveis à reprodução dos meios de vida e da cultura de convivência com o Semiárido. A plenária da nossa juventude demonstrou que a democratização do acesso à terra no Semiárido é condição indispensável para a continuidade do projeto que estamos construindo. Nossas famílias sem terra ou com pouca terra não possuem as condições para assegurar a reprodução da agricultura familiar e seu modo de produção e de vida. A nossa juventude expressou sua defesa pela educação contextualizada e o repúdio ao fechamento das escolas rurais com o processo de nucleação nas sedes dos pequenos municípios. Para dar continuidade a nossa mobilização de juventude camponesa no Semiárido, apresentamos como desafio a necessidade de criar e fortalecer processos de auto-organização. Representantes de nossos povos indígenas e comunidades tradicionais também marcaram presença no encontro. Ao compartilharem os saberes ancestrais moldados por gerações na convivência com o Semiárido, chamam a atenção para a importância dos processos coletivos na gestão dos bens comuns e na defesa de direitos territoriais. Esses ensinamentos são inspiradores para as nossas organizações de base. Criar e fortalecer mecanismos de gestão de bens comuns é um desafio colocado para a conservação dos bens naturais e culturais sobre os quais se faz a economia da agricultura familiar. Os conhecimentos estão entre os bens comuns a serem construídos e defendidos coletivamente. Nossos conhecimentos são um patrimônio inalienável. Sem eles perdemos a autonomia sobre nossos destinos. Demandamos uma assessoria técnica que reconheça e dialogue com nossos saberes, mobilizando conhecimentos acadêmicos para fortalecer a cultura de convivência com o Semiárido. Nossas organizações devem também assumir o compromisso de reconhecer e incentivar o papel das agricultoras e agricultores experimentadores. A revolução que estamos fazendo no Semiárido é silenciosa. Mas é muito visível. Nossas experiências são nossas trincheiras de resistência e de luta. Nossas virtudes para o conjunto da sociedade são cada vez mais reconhecidas. Apresentamos soluções concretas para um conjunto de desafios da sociedade brasileira. Mas são soluções que rompem com estruturas de poder oligárquicos. Por essa razão, parcelas da elite se sentem ameaçadas. Procuram desqualificar os direitos que estamos conquistando com visões preconceituosas e manipuladoras da opinião pública disseminadas cotidianamente nos meios de comunicação de massa. Em poucos dias, os golpistas que destituíram provisoriamente o governo da presidenta Dilma já disseram a que vieram. Sua agenda política é de desmonte de direitos sociais em benefício das oligarquias regionais e nacionais e do capital transnacional. Nosso caminho sempre foi o da resistência e o da luta. Nossa luta não é apenas nas comunidades. É também nacional. Nos alimentos em nosso encontro para voltar para nossas comunidades para sermos sementes da resistência e da luta popular. Saímos conscientes de que não há outro caminho a ser trilhado exceto esse em que sempre estivemos. Um caminho iluminado de inventividade, resistência, luta e esperança. Aracaju-SE, 09 de junho de 2016 Nenhum direito a menos!!! Não ao golpe!!! Fora Temer!

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